quinta-feira, junho 03, 2010

Morreu o João Aguiar, um dos poucos compatriotas de quem sentia orgulho. E assim Portugal tornou-se um lugar ainda mais miserável. Ler os livros dele é a melhor homenagem que lhe podemos prestar.




"...O motor roncava e trepidava em ritmo regular. O som que fazia alterou-se
ligeiramente quando os dois corpos se soltaram, começaram a deslizar, finalmente lançados um contra o outro pela estreiteza do orifício inferior do funil e foram apanhados pelos mecanismos de corte e trituração.
Os cutelos cortaram a carne e as cartilagens, as facas eléctricas atacaram os ossos e as rodas trituradoras desfizeram os pedaços mais resistentes. O motor, sujeito a um esforço maior, alterou o som e o ritmo, porém Não parou.
E continuou a funcionar depois de ter cumprido a sua função, depois de os corpos,
cortados, triturados e misturados, serem lançados na tina, onde estavam os temperos para chouriço.
Mas o esforço fora demasiado, provocara um sobreaquecimento.
O motor incendiou-se. As ligações eléctricas rebentaram e ajudaram ao fogo do
combustível. Em poucos minutos, ardiam também os trastes partidos que havia na cave e
Não tardou que a Casa Velha se transformasse num braseiro.
O clarão do incêndio era visível à distância. No entanto, a três quilómetros dali, em
Poiais da Santa Cruz, ninguém deu por nada. Nem admira, pois era já tarde e toda a gente estava a dormir.
Pelas três horas da manhã, rebentou uma formidável tempestade.
Na aldeia, muita gente acordou mas esses não se lembraram, já Se vê, de pôr as
cabeças fora das janelas para explorar o negro Da noite.
Portanto, não repararam que a tempestade tinha dois Núcleos, duas nuvens
gigantescas em cujo centro fulgiam relâmpagos contínuos. Nem que os trovões que
abalavam os ares eram a dois tons, um cavo e profundo, outro mais estridente e metálico.
Baixo e tenor.
Era como se as nuvens falassem uma com a outra ou cantassem a duo.
Durante meia hora, a tempestade pairou sobre Poiais da Santa Cruz. Depois
começou a soprar um vento muito forte e em Pouco tempo o céu, por cima da aldeia, ficou limpo.
Mas a tempestade Não se dissipara. As nuvens carregadas de chuva e de faíscas
deslocavam-se rapidamente, levadas pelo vento.
Iam para o Sul, para o Alentejo, onde, nesse ano, havia seca."

4 comentários:

Infame disse...

apenas li "Ines de Portugal", pouco mais conheço desse senhor...de qualquer maneira, paz ao seu espirito

ForbiddenWoods disse...

Também estava para colocar um tópico sobre isso. Desfrutei de grandes momentos ao ler alguns dos livros escritos por esse senhor. Não só foi um grande escritor, do romance histórico a obras de ficção, mas também abordou períodos cronológicos que poucos ousaram explorar, da Pré-histórica, Idade do Ferro, Baixo e Alto Império Romano, e fez-lo com grande mestria, juntando a escrita criativa com a pesquisa histórica.
A voz dos deuses, A hora de Sertório, Uma deusa na bruma e a fantástica obra de ficção: A encomendação das almas foram apenas algumas das obras que tive o prazer de ler. O autor morre, mas a sua obra haverá de continuar. A cultura portuguesa ficou mais rica pelo seu contributo e mais pobre pela sua partida. Assim como os seus leitores.

Sit tibi terra levis
Requiescat in pace

Unknown disse...

João Aguiar.

Apesar de tudo e de nada, vou continuar a ser sempre um pobre ignorante. No meu espirito este homem escrevia para crianças - ponto final.Como de criança tenho muito, mas não me sobeja o gosto pela literatura infantil, nunca busquei. Também nunca é tarde...vou ali à biblioteca do Fernandes Tomás.

Entretanto, obrigado pela luz.

Corruptor disse...

Vai lá que não te arrependes. Só espero é que o Fernando tenha lá o que é preciso.