'Ferida aberta'

'Quando olho para dentro desta fodida cona de puta sinto o mundo todo debaixo de mim, um mundo que cambaleia e se desmorona, um mundo gasto e polido como o crânio de um leproso. Se houvesse um homem que ousasse dizer tudo quanto pensasse deste mundo, não lhe restaria um palmo quadrado de solo em que apoiar-se. Quando surge um homem, o mundo exerce pressão sobre ele e quebra-lhe a espinha. Ficam sempre de pé muitos pilares podres, demasiada humanidade supurante para permitir que o homem desabroche. A superstrutura é uma mentira e os alicerces são um imenso e trémulo medo. Se, com intervalos de séculos, aparece um homem com uma expressão faminta e desesperada nos olhos, um homem que seria capaz de virar o mundo de pernas para o ar a fim de criar uma nova espécie, o amor que traz ao mundo tranforma-se em fel e ele torna-se um flagelo. Se de vez em quando encontramos páginas que explodem, páginas que ferem e cauterizam, que arrancam gemidos, e lágrimas, e pragas, sabei que provêm de um homem de costas direitas, de um homem a quem restam como únicas defesas as suas palavras, e que as suas palavras são sempre mais fortes do que o peso esmagador do mundo, mais fortes do que todas as rodas e torturas que os cobardes inventam para esmagar o milagre da personalidade. Se algum homem ousasse jamais exprimir tudo quanto tem no coração, revelar o que é realmente a sua experiência, o que é veramente a sua verdade, se isso acontecesse creio que o mundo se despedeçaria, que se desintegraria em pedacinhos, e nenhum deus, nenhum acidente, nenhuma vontade poderia jamais voltar a reunir os bocados, os átomos, os elementos indestrutíveis que entraram na construção do mundo.
Nos últimos quatrocentos anos desde que apareceu a última alma devoradora, desde que existiu o último homem a conhecer o significado do êxtase, tem-se verificado um declínio constante e firme do homem na arte, no pensamento e na acção. O mundo está gasto:não resta um peido seco.'

Trópico de Câncer, Henry Miller